Crítica à ideia de ''financeirização''
A “financeirização” é definida, por autores críticos ao pressuposto fenômeno, como “um padrão sistêmico de acumulação de riqueza, correspondente a uma certa etapa histórica do capitalismo. Nesta fase, imaginam o capital financeiro constituir a forma de capital preponderante, exercendo dominância financeira sobre as variáveis econômicas”.
Pressuposto é o que se supõe antecipadamente. É aquilo imaginado ou pensado sobre determinada situação antes de ter conhecimento profundo sobre ela. Não pode ser apresentado como indiscutível para o ouvinte, não permitindo contestações ao falante.
A “financeirização” é uma ideia possível de ser presumida, mas não é verdadeira. Sempre a lógica financeira racionalizou todas as decisões econômicas porque levam em conta o custo de oportunidade: o deixado de ganhar ao optar por um em lugar de outro.
Ou trazer a valor presente os estimados fluxos de renda futuros de investimentos alternativos para decidir por qual deles optar. Ou diversificar as formas de manutenção de riqueza em ativos para compensar eventuais perdas com ganho. Ou acompanhar um valor médio ponderado de mercado ao invés de tentar superá-lo sistematicamente.
Todas essas ideias brotam de uma racionalidade econômico-financeira. Mas as Finanças Comportamentais demonstram elas nem sempre serem usadas em situações de stress emocional em tomadas de decisões.
Por sua vez, o subentendido é uma insinuação dentro do enunciado, algo possível de ser deduzido a partir da análise fornecida. A citada literatura carece de fundamentação empírica para suas proposições, subentendidas na leitura das entrelinhas.
Um problema dessa literatura de denúncia do capitalismo “financeirizado” é não dimensionar o dito com estatísticas. Seus autores não testam suas hipóteses com a medição dos argumentos apresentados com conhecimento de causa.
Pressupõem o capital industrial consistir na forma mais geral e elementar do capital. Colocam como sua exclusividade a produção de mais-valia. Apelam para o falso argumento de apenas essa forma contemplar o processo de produção de mercadorias.
Evidentemente, isso é empírica e conceitualmente falso. Tanto a economia agrícola produz mercadorias, seja commodities para exportação, seja alimentos para o mercado interno, quanto a economia terciária produz serviços. Todos são setores produtivos e adicionam valor.
Basta conferir no Sistema de Contas Nacionais o fenômeno da “desindustrialização” no último quarto de século. As indústrias de transformação declinaram sua contribuição ao valor adicionado, o qual acrescido dos impostos resulta no PIB. Elas contribuíam com 15% em 1995 e passaram para 10% em 2020.
Com isso, a Indústria Geral perdeu os mesmos 5 pontos percentuais, caindo de 23% para 18%. Ganhou-os Serviços (de 58% para 63%) do PIB. Se considerarmos exclusivamente o valor adicionado (VA), a Indústria Geral diminuiu de 27% para 20% e Serviços se elevaram de 67% para 73%. Agropecuária ficou entre 6% e 7%.
A desindustrialização não foi devido ao crescimento das atividades financeiras (“financeirização”), mas sim por conta da perda de competividade internacional por parte da economia brasileira. Contenta-se em exportar commodities e importar bens industriais em trocas de comércio exterior com a China e o Sudeste asiático.
Em leitura equivocada da Teoria do Valor-Trabalho, alguns “materialistas históricos” pressupõem outras atividades econômicas só fazerem a apropriação de uma fração do mais-valor produzido pelo capital industrial. Seria como todo o resto da economia fosse tributária da exploração de uma cada vez mais reduzida categoria de operários!
Esse paradoxismo está se agravando com a 4ª. Revolução Tecnológica. No limite, predominarão robôs automatizados nas fábricas, supervisionados por poucos seres humanos. Os adeptos dessa esdrúxula Teoria do Valor-Trabalho Industrial ainda não deram “adeus ao proletariado”...
Já hoje mais de ¾ dos empregos se concentram em Serviços. No fim de 2020, com 86 milhões de pessoas ocupadas no Brasil, 8,6 milhões (10%) estavam na Agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura, e 10,9 milhões (12,7%) na Indústria.
Por apenas transferir propriedades privadas sobre bens pré-existentes, o capital comercial seria também considerado improdutivo. Curiosamente, ele não é tão demonizado como o capital bancário, porque certos marxistas acham o capital industrial ser dependente dele para a “realização da mais-valia”, isto é, a venda final das mercadorias produzidas pelo louvado capital industrial.
Por o banqueiro – na realidade, os bancários – lidar com um conjunto de informações de bits e bytes, trabalhando com sistemas cibernéticos em extensas jornadas de trabalho, e não se “sujarem de graxa”, no “chão das fábricas”, eles seriam “ociosos”. Como as fábricas atuais com robôs automatizados são assépticas, tornou-se paradoxal a crítica de, talvez por usarem terno-e-gravata, banqueiros e bancários estariam condenados a uma não aceitação social. Seriam “improdutivos”!
Os marxistas adeptos da denúncia da “financeirização” confundem a rede de relacionamentos entre os diferentes “nós”, estabelecida no sistema de pagamentos monetários, com uma dominância financeira. Mas as big-techs não teriam seus maiores valores de mercado devido às inovações tecnológicas? E todas as outras atividades de companhias abertas não determinariam seus valores de mercado, indiretamente, via atribuições subjetivas de valores às suas ações? Tudo isso seria capital fictício?!
Minha crítica é sob o ponto de vista histórico e holístico. Por essa visão sistêmica, o sistema capitalista sempre foi um sistema financeiro, um é inseparável do outro.
Um sistema complexo como tal emerge das interações de seus diversos componentes – capital industrial, capital comercial, capital portador de juros e capital fictício – sem dominância absoluta de nenhum, pois todos são interdependentes. Então, não cabe falar em “Era ou Fase de Financeirização”. E muito menos demonizar banqueiros com a retórica intolerante, binária e reducionista: “nós contra eles”.
Em lugar de nomear os políticos golpistas, opta-se pela crítica ao rentismo, em clara análise economicista. Esta é feita quando a economia determina diretamente a política. Essa literatura de denúncia à “financeirização” mistura “alhos-e-bugalhos”.
No balaio de incômodos, supostamente provocados pela “financeirização”, cabem rentismo, patrimonialismo, conservadorismo, neoliberalismo, desregulamentação, privatização, desnacionalização, livre comércio, austeridade fiscal, e tudo mais de ruim. Até a política passa a ser vista como fosse determinada diretamente pela riqueza e os rendimentos financeiros!
Quanto ao estoque de riqueza, os analistas deveriam estar atentos para a transição histórica. No passado, antes das reformas financeiras de 1964, os investimentos típicos tanto da classe de alta renda, quanto da reduzida classe média (anterior à massificação do Ensino Superior), eram quase exclusivamente feitos em imóveis urbanos ou rurais. A população rural ainda era superior à população urbana.
Estima-se na ocasião cerca de 28% dos imóveis urbanos serem alugados. Em 2019, 17,7% dos imóveis eram alugados, 73,5% próprio de algum morador e 8,7% cedidos. Entre 1964 e 2016, foram financiados 25% dos 68 milhões domicílios construídos.
A sociedade brasileira passa, desde então, tanto pela expansão do número de trabalhadores intelectuais mais bem remunerados, quanto pela elevação do grau de urbanização até 85% da população. Nessa transição, a geração babies-boomers, para sua futura aposentadoria, passou a acumular mais ativos financeiros em lugar de ativos imobiliários.
Ao contrário do sugerido pela literatura de denúncia da “financeirização”, de maneira pressuposta sem medição, rendimentos provenientes de aplicações financeiras serem predominantes na fase atual do capitalismo, as DIRPF não confirmam essa hipótese. Os fluxos de rendimentos acumulados de 2015 a 2019, recebidos como Renda do Trabalho, tiveram seus percentuais em elevação de 67% para 86%. Em contrapartida, os da Renda do Capital Produtivo foram de 20% para 28% e os da Renda do Capital Financeiro de 4% para 7%. Os não especificados tiveram queda de 7% para 3%.
Em uma fase cíclica de desalavancagem financeira, alguns denunciam o sistema financeiro não cumprir sua presumida missão básica: financiar. Se bastar um “cisne negro” para falsear a hipótese de “todos os cisnes são brancos”, no ano de 2020, a relação crédito/PIB atingiu 54,2%, em 2020, elevação anual de 6,2 p.p. Ultrapassou até o pico mais elevado, registrado em 2015: 53,9% do PIB.
Os adeptos da denúncia da “financeirização” necessitam rever seus conceitos à luz dessas evidências – e muito mais fatos e argumentos encontrados no meu novo livro.
Download do livro: Fernando Nogueira da Costa. Conduzir para não ser Conduzido – Crítica à Ideia de Financeirização. maio 2021.
Fernando Nogueira da Costa é professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Conduzir para não ser Conduzido: Crítica à Ideia de Financeirização” (2021). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com
Créditos Carta Maior
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