Austeridade é um termo geralmente entendido como virtude. Nas definições dos dicionários aparece como inteireza de caráter, qualidade de austero (que por sua vez significa severo, rígido, com controle sobre seus apetites ou paixões, sóbrio, econômico). Dito desta forma, seu antônimo só pode ser visto como desleixo ou irresponsabilidade, qualificativo que os economistas que pregam o mercado livre atribuem aos governos quando gastam. Não é essa, todavia, a única opinião em economia, e este artigo procurará explicar os argumentos básicos de cada visão, para melhor instruir as discussões a respeito.
Os economistas neoliberais, chamados ortodoxos, dominam o pensamento econômico na academia dos países avançados e fornecem os argumentos (os chavões, a ideologia) divulgados pela mídia tradicional no mundo. Para eles, a liberdade de mercado é o melhor meio de regular as economias, sendo o papel do Estado desnecessário ou mesmo nocivo, devendo ser evitado ou reduzido. A ideia, do ponto de vista monetário, é a de que o Estado tem um viés inflacionário, porque para gastar mais do que arrecada precisa emitir moeda e, assim fazendo, gera inflação. A inflação, nesta visão (e somente nesta), é vista como a única consequência deste tipo de comportamento, porque esses economistas acham que a moeda ou o crédito injetado na economia não estimula de forma duradoura o crescimento da produção, da renda e do emprego. Ou seja, a moeda é neutra. Ao entrar na economia, a maior quantidade de moeda aumenta a demanda, e como supõem que a produção ou a oferta não aumenta de forma duradoura, a única consequência esperada é o aumento dos preços, isto é, inflação.
No que se refere à política fiscal, essa visão neoliberal acha que é preciso reduzir os gastos do Governo já que se eles levam à emissão monetária, os efeitos inflacionários são os acima mencionados. Se ele se endivida, a taxa de juros tende a subir e isso desestimula investimentos privados. Assim, os investimentos públicos aumentam, mas os privados diminuem, sendo nulo o efeito líquido quantitativo sobre a economia (crowding out). Do ponto de vista qualitativo, a ortodoxia acha que os governos são ineficientes e é preferível que os investimentos sejam privados. Finalmente, admitem um papel do Governo para resolver externalidades negativas, como, por exemplo, a poluição de alguns empreendimentos que acabam prejudicando o ambiente dos vários agentes. Mas, mesmo neste caso, há os que desconfiam da ação dos governos e alegam que ela tende a gerar comportamentos privados ineficientes e predatórios que visam ganhar com as regulamentações impostas (rent-seeking behavior).
São esses os argumentos usados para pedir austeridade da política econômica. Trata-se, então, de pedir a redução dos gastos dos governos, que tais economistas acham que são ineficientes, ou inflacionários.
Não há “pensamento único”
Essa não é, porém, a posição dos economistas críticos do neoliberalismo ou heterodoxos. Para eles, uma injeção monetária ou de crédito pode estimular a produção e o emprego e, assim, aumentar o crescimento econômico dos países. O aumento da quantidade de moeda ou de crédito implica taxas de juros mais baixas que estimulam o investimento e, com ele, a produção, o emprego e a renda da economia.
Essas ideias dos economistas críticos decorrem de teorias econômicas diferentes da teoria ortodoxa. As teorias heterodoxas (pós-keynesianas, kaleckianas, marxistas, e assim por diante) concordam que há um papel econômico importante do Estado. Portanto, pedir austeridade, no sentido de que o Estado não gaste, como fazem os economistas ortodoxos, significa impedir tal papel, ampliando o desemprego, e travar a economia, impedindo que a renda e a produção cresçam.
Para os economistas pós-keynesianos as decisões econômicas em geral, mas, sobretudo, as decisões de investimento, são permeadas por incerteza. Seja em função do futuro que é desconhecido, ou em vista do caráter descentralizado das decisões, a verdade é que não é possível prever, nem probabilizar o que ocorrerá, mas apenas fazer conjecturas a respeito do que se espera ganhar ao investir. Essa expectativa de ganho é comparada com a taxa de juros, que é uma medida do custo deste investimento. Se o ganho esperado for superior, isso estimulará a decisão de investir. Em caso contrário, essa decisão não será tomada. Como não é possível calcular efetivamente a rentabilidade estimada do investimento, já que o tipo de incerteza que a afeta não é probabilizável, e já que também não é possível antecipar a taxa de juros, porque também depende de fatores afetados pela incerteza, as decisões de investir dependem de fatores subjetivos, do otimismo ou pessimismo dos agentes econômicos e do maior ou menor grau de confiança que têm nas suas conjecturas. Isso conduz os investimentos a serem voláteis e a renda, a produção e o emprego a serem instáveis.
É essa instabilidade inerente à economia que justifica a intervenção do Estado, via política monetária e política fiscal. Com a política monetária é possível baixar a taxa de juros e, assim, garantir para maior número de potenciais investidores que a rentabilidade esperada do investimento supere seu custo, levando-os à decisão de investir. Crescem então a produção, a renda e o emprego, e essa é a razão pela qual esses economistas criticam as taxas altas de juros. Elas inibem o investimento, travam a economia, aumentam o desemprego e, desestimulando o crescimento da oferta, acabam por impedir até o arrefecimento da inflação a médio prazo.
Nesta concepção, contudo, a existência da mencionada incerteza pode ser tal que, mesmo baixando a taxa de juros, a expectativa de ganhos esteja ainda menor, inviabilizando a decisão de investir. Nesse caso, os governos precisam investir eles próprios, não para substituir a iniciativa privada, mas para aumentar o emprego e a renda. O investimento público tende a aumentar o otimismo dos investidores, alterando suas expectativas de ganho e levando-os a investir mais nos ciclos de produção seguintes.
Nessas circunstâncias, uma política de austeridade, entendida como de redução dos gastos dos governos, é péssima, não apenas porque reduz a demanda das mercadorias e serviços dos que já investiram, levando à queda das vendas, desemprego e nova queda da produção mas, principalmente, porque inibe novas decisões de investimento, impedindo a saída das crises.
Mesmo para os economistas marxistas, que não veem no Estado a solução dos problemas que são inerentes à lógica do capitalismo, há um papel do Estado sempre que ele possa melhorar a posição do trabalhador na relação capital-trabalho. Quanto mais livre é o mercado, maior é o papel da concorrência e esta, para os marxistas, se realiza por meio de introdução cada vez mais acentuada de inovações tecnológicas que aumentam a produtividade dos trabalhadores. Essa corrida tecnológica, por um lado, é cara, e tendem a vencer a concorrência os que primeiro e mais recursos têm para investir em pesquisa e introdução de técnicas mais modernas. Assim, é a própria concorrência que leva aos oligopólios e monopólios ou à concentração e centralização dos capitais porque, uma vez bem sucedidos nesse processo, os capitalistas podem investir ainda mais e, com isso, eliminar concorrentes. Por outro lado, como o progresso tecnológico, no capitalismo, se faz para aumentar a produtividade dos trabalhadores, não para lhes poupar esforço, trata-se de um progresso tecnológico geralmente mais intensivo em capital e poupador de trabalho, gerando desemprego.
Assim, deixar a economia ao mercado significa ampliar a concentração de capital e o desemprego e reduzir salários, piorando as condições dos trabalhadores. Os marxistas obviamente reconhecem a importância do dinheiro e do mercado no capitalismo, porque sabem que todos são compradores e, para tanto, precisam vender, mas eles criticam tal forma de organização social. No capitalismo, a inserção social e a vida das pessoas dependem de uma coisa, o dinheiro – ao invés disso se fazer de forma consciente, com prioridades planejadas. Finalmente, para os marxistas, a mudança para um sistema social melhor passa pela construção de condições materiais de mudança no próprio sistema atual. Isso não se faz em condições adversas para os trabalhadores, que precisam ser os responsáveis por essa construção e precisam então se preparar e se organizar. Pedir austeridade nessas circunstâncias, ou pedir redução de gastos dos governos, significa reduzir recursos de políticas sociais e impedir a realização de investimentos públicos para fins sociais, ou seja, punir os trabalhadores, principalmente os que mais dependem dessas políticas e serviços que são os mais pobres.
O que fazer?
Do exposto até aqui, é possível verificar, primeiro, que não é por casuísmo ou por razão tola que se discute e se resiste à austeridade, mas por uma concepção teórica diferente da hoje dominante. Segundo, ao contrário do que se veicula, recusar a austeridade da política econômica não é irresponsabilidade, mas, ao contrário, é lutar para que situações de crise como a que vivemos desde 2008 (cuja responsabilidade é do próprio neoliberalismo) , não ocorram. Terceiro, para evitar o custo social que pagamos ainda hoje em função dela. É evitar, por exemplo, situações como a da Grécia que tem hoje uma pessoa desempregada de cada quatro pessoas participantes do mercado de trabalho, e seis jovens em cada dez. .
Isso também não significa que os economistas heterodoxos não se preocupem com as finanças do Estado. Ao contrário, por conceberem a importância e o papel que ele tem, e que têm os gastos públicos, os heterodoxos reconhecem a necessidade de zelar pela situação financeira do Estado. Mas, por um lado, se os gastos forem destinados ao aumento da demanda agregada, estimulando o investimento, a consequência é um maior crescimento do produto o que, por si só, já ajuda as finanças públicas, pois a arrecadação cresce sem aumentar o esforço da sociedade, e porque os indicadores financeiros, geralmente calculados como proporção do PIB, também melhorarão. Por outro lado, a melhoria da situação fiscal pode ser feita por meio de aumento de tributação, para evitar os cortes de gastos que estimularão o crescimento da produção e do emprego.
Quando se fala no Brasil de aumento da tributação muita gente reage de imediato dizendo que ela já é pesada demais. Entretanto, a tributação pesada, no Brasil, é a indireta, que é repassada para os preços das mercadorias, encarecendo-as. Ela não apenas é pesada, mas é altamente regressiva, sobretudo quando incide sobre mercadorias de primeira necessidade, porque proporcionalmente a suas rendas, os mais pobres pagam mais para comprá-las. Essa tributação é excessiva e ruim, e deveria cair. Observe-se, porém, que a nossa tributação direta, sobre a renda, é muito baixa relativamente aos demais países. Nossa maior alíquota, hoje, é de 27,5%, enquanto as alíquotas de imposto de renda de vários países alcançam 50% e até 60%.
Além disso, o sistema tributário brasileiro é injusto, porque tributamos com a mesma alíquota ou com alíquotas muito próximas pessoas que ganham rendas muito diferentes. Nossa concentração de renda, sabemos, é grande. Conforme estudo recente, usando pela primeira vez dados tributários, quase a metade de toda a renda no país está concentrada nos 5% mais ricos, um quarto, no 1% mais rico e o 0,1% mais rico recebeu quase 11% da renda total. Isso, por si só mostra como temos que ter alíquotas muito diferentes entre esses estratos de renda. Mas é preciso destacar ainda que quando falamos desses 5% da população mais rica não estamos nos referindo sempre a milionários, já que o mesmo artigo mostra que a renda mínima nesse estrato foi de R$ 57.600,00 anuais em 2012, ou R$4.800,00 mensais.
Isso mostra que é dentro dessa faixa que é preciso tributar, porém que é preciso criar alíquotas superiores para tributar as rendas muito mais altas que também estão contidas nesses 5% mais ricos. Essa é uma boa sugestão de ajuste, que não compromete o papel econômico das políticas públicas e evita a austeridade.
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